Me desculpe

Quando você chega naquela fase em que não sabe mais o que fazer

Briga de trânsito

Faz um tempo, mas ainda lembro que era um domingo de muito calor, daqueles típicos do Rio de Janeiro. Sol extremo, trânsito pesado… Como estava ocorrendo um conflito armado do outro lado do mundo, exatamente nos países de onde vem o petróleo, o preço da gasolina estava nas nuvens e por isso poucos motoristas estavam usando o caríssimo, e necessário, ar condicionado.

Em relação à economia, eu não estava nem aí… Meu carro chamava a atenção na rua pela música alta, mesmo com os vidros fechados, ar “no talo” e eu dirigindo com uma paciência que poucas vezes em minha vida eu teria demonstrado.

Zona oeste do Rio de Janeiro é uma área delicada. Eu estava dirigindo por um bairro que não conhecia, na verdade em uma “comunidade”: entrei no local por conta do maldito GPS, que calculou a menor rota e me conduziu para uma área totalmente complicada de trafegar… Tanto que eu não estava conseguindo ultrapassar o um ônibus parado a minha frente.

Estava nítido que o motorista discutia com os passageiros, e só de pirraça não iria sair tão cedo com o ônibus. Chegou uma hora que os outros carros também parados atrás de mim começaram a buzinar, e para não me aborrecer executei essa sequência de movimentos:

Respirei fundo, verifiquei se tinha algum veículo vindo na contra mão, liguei o pisca alerta para a esquerda, olhei no retrovisor e sai cantando pneus para o motorista do ônibus pelo menos ouvir a minha indignação. Realmente não sei se fiz nessa ordem, mas segui calmamente em frente pela rua esburacada até parar em um sinal.

O sinal de trânsito ficava em um cruzamento bem movimento, e tinha radares de avanço e velocidade ligados. Visualizando a minha direita havia um bar lotado, com todas as mesas cheias de garrafas de cerveja. As mesas eram tão coladas na rua que dava para ouvir os papos dos bêbados, a maioria não dizendo coisa com coisa.

Minha distração momentânea foi quebrada quando um motoqueiro com uma enorme caixa vermelha no bagageiro da sua moto fechou a minha frente na rua, impedindo meu carro de sair sem antes passar por cima dele.

Meu “instinto aranha” entrou em alerta. Olhei para o lado do carona, no poeta luvas e vi que minha arma estava ali, próxima da mão, carregada e destravada… Se fosse um assalto eu estava preparado. Pensei também que no meu porta malas tinha um taco de basebol de metal, que eu ganhei de um cliente, e que poderia usar caso do motorista da moto quisesse me agredir por algum motivo.

Pego a arma, o taco ou os dois para ter uma variedade maior de reações?

O pessoal da rua se levantou… Vieram para ver o que estava acontecendo. Isso era um bom sinal, já que se fosse um assalto todo mundo já teria “sumido no terreno” (afinal, ninguém iria reagir a um assalto para livrar a cara de um marmanjo de 1.80m).

Tirei a arma de cogitação. Apertei o botão do porta malas, iria sair rapidamente do carro para pegar o taco… Não deu tempo, o motoqueiro parou do lado da minha janela gritando alguma coisa e bateu no vidro para eu baixá-lo. Em suas mãos carregava uma barra de ferro.

Baixei a música, recolhi o vidro e só consegui ouvir as últimas palavras do rapaz, soltas no ar em tom de ameaça e raiva:

– Seu idiota cego! Não viu o que você fez, não sabe dirigir? Você me derrubou da moto seu paspalho!!!

Em outras vidas eu iria sair do carro, correr para o porta malas, pegar o meu taco e continuar a discussão de igual para igual com ele. Mas esse locutor que voz fala virou adepto do estoicismo, budismo e práticas de meditação… Hoje em dia poucas coisas no mundo me deixam nervoso ou ansioso.

Quando o vidro baixou, os ocupantes do bar começaram a fazer aquela cara de gosto por sangue, já que todos os dias rolava uma pancadaria para completar o espetáculo, mas eu fiz o contrário do que eles queriam, e num movimento bem lento e calmo olhei bem no fundo nos olhos do rapaz da moto e disse:

– Foi mal cara, eu errei, ME DESCULPE!

Os bêbados, que pularam da mesa com atitude de empolgação achando que iriam ver mais uma briga, congelaram no ar. O som que estava rolando em uma boate ao lado parou. Toda a rua congelou com essas palavras. Tirando minha voz o silêncio era devastador para os ouvidos, acostumados com o caos da cidade…

O motoboy só teve tempo de falar, já gaguejando:

– O que foi que você disse????

Respondi mais uma vez:

– ME DESCULPE!

O pobre do motoboy, cheio de cicatrizes recentes, hematomas curados e a carcaça já batida de tanto sair na porrada todos os dias, não sabia o que fazer: ele nunca tinha chegado nesse ponto em uma discussão de trânsito. De repente verteram pequenas lágrimas de seus olhos…

O garçom se ajoelhou e enquanto rezava, fez diversas vezes os sinal da Santa Trindade.

Até mesmo o cachorro vira-latas que brigava com os gatos por alguns ossos, parou o que estava fazendo e prestou atenção ao desenrolar dos acontecimentos.

Passados alguns segundos, que pareciam vários minutos ou até horas, o sinal abriu mas nenhum carro avançou o sinal, verde… Todo os motoristas queriam ver como era o procedimento se algum dia em sua vida tivessem sorte de ouvir essa palavra no trânsito:

– ME DESCULPE!

Como ninguém falava nada eu coloquei meu carro em movimento e sai lentamente da esquina. Todos acompanharam meu deslocamento apenas com a cabeça. Ao fundo daquele silêncio sepulcral ouviam-se os grilos na rua.

Assim que eu ultrapassei a esquina seguinte, vi uma carreata de veículos me seguindo em fila, num lindo cortejo, típico de um desfile militar. Um “buzinaço” começou e todos os motoristas colocaram um pano branco ao lado da porta, simbolizando a tão almejada e querida paz na estrada.

Hoje, lembrando do ocorrido, ainda vem a minha mente que ao dar uma última olhada pelo retrovisor, vi toda aquela galera na esquina do bar se abraçando, alguns chorando… O motorista da moto sendo consolado pelos transeuntes e o sol se pondo com raios atravessando o bairro em homenagem ao inusitado fato ocorrido.

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