O Homem Duplicado: O filme que explodiu minha cabeça e me fez mergulhar no caos da mente masculina

Entenda por que o filme de Denis Villeneuve é uma obra-prima psicológica sobre a mente masculina.

Jake Gyllenhaal como os personagens Adam e Anthony se confrontando em uma cozinha na cena do filme O Homem Duplicado.

O tenso primeiro encontro entre Adam e Anthony, as duas faces do mesmo homem interpretadas por Jake Gyllenhaal. Fonte: Divulgação / Rhombus Media

Domingo em casa, tudo resolvido no dia, roupa separada da semana, agenda pronta… Relaxei e sentei para assistir, mais uma vez, a “O Homem Duplicado” (Enemy), do Denis Villeneuve, e preciso confessar algo embaraçoso a vocês: da primeira vez, eu não entendi quase nada. Fiquei com aquela sensação de “que p*rra foi essa?“, mas algo ali me fisgou.

Agora, depois de várias revisões do filme, a ficha caiu. E caiu com força. É como se eu tivesse encontrado a chave para um quebra-cabeça que me assombrava há anos. A experiência foi tão impactante quanto a que tive com “Tempo de Guerra (Warfare)“, mas de uma forma completamente diferente. Enquanto um me deixou sem fôlego pela ação, este aqui me deixou sem ar pela tensão psicológica.

Sabe, eu sempre gostei de filmes que mexem com a nossa percepção, e agora, com tudo mais claro, posso afirmar sem medo:

O Homem Duplicado é o Clube da Luta de Villeneuve.

É uma viagem tão profunda e perturbadora pela psique de um homem quanto a obra-prima de Fincher, mas de um jeito mais sutil, mais sussurrado e, talvez por isso, ainda mais assustador.

O filme é uma adaptação do livro “O Homem Duplicado” do nosso gênio José Saramago, que, em outra confissão constrangedora, ainda não li 😳. E, embora o cinema, por sua natureza, tenha simplificado parte da reflexão filosófica densa do livro, ele compensa com uma atmosfera visual e simbólica que te prende e não te solta mais. A ideia do “duplo” não é nova, claro. Dostoiévski já tinha explorado isso de forma brilhante em seu livro “O Duplo” (também não lí, mas aqui eu tenho uma desculpa mais convicente: estou a mais de um ano preso no denso e enorme “Os Irmãos Karamazov”), mas Villeneuve pega essa premissa e a transforma em um pesadelo moderno sobre identidade, infidelidade e o pavor do compromisso.

 

A explicação fácil

 

Se você, como eu, ficou perdido, aqui vai a chave que destravou tudo para mim. Pense assim: Enemy é Clube da Luta. A grande diferença é que ele opta por mostrar em vez de contar. Nunca temos aquele momento de revelação definitiva, como quando descobrimos a verdade sobre Tyler Durden. Villeneuve prefere espalhar pequenas pistas, detalhes que, somados, nos fazem perceber que Adam (Jake Gyllenhaal), nosso narrador, não é nada confiável.

Na prática, Adam e Anthony são a mesma pessoa. Estamos vendo a crise de um homem chamado Anthony Claire, casado com Helen, que está grávida. Ele se sente sufocado, preso, e sua mente cria uma “vida dupla” literal para lidar com isso. De um lado, temos Anthony, o ator extrovertido e infiel. Do outro, Adam, o professor de história monótono e tímido, que tem um caso com Mary. É a personificação do seu conflito interno: o desejo de escapar da rotina e das responsabilidades versus a vida que ele construiu.

 

A maneira mais fácil de assistir Enemy

 

Para mergulhar no filme sem se afogar, entenda que estamos assistindo à crise pelo subconsciente de Anthony. As reações das outras pessoas são, na verdade, projeções de como ele processa a situação.

Quando sua esposa, Helen, encontra “Adam”, sua confusão não é sobre a existência de um sósia. É a forma como a mente de Anthony dramatiza a reação dela ao seu comportamento errático, à sua mudança de humor, à sensação de que ele não é mais o homem com quem ela se casou. O mesmo vale para o trágico acidente de carro envolvendo “Anthony” e sua amante, Mary. Não é um evento literal, mas a representação simbólica e violenta do fim daquele relacionamento extraconjugal. Com essa base, todo o resto, incluindo as aranhas, começa a fazer um sentido aterrorizante.

 

O Medo em Oito Patas: As Aranhas e o Compromisso

 

E vamos falar das aranhas, porque elas são o coração simbólico do filme. Aranhas tecem teias, prendem suas presas. No universo de “Enemy”, elas são a metáfora perfeita para o medo que Anthony tem do compromisso, de se ver preso na “teia” de um relacionamento sério e da paternidade.

Todas as mulheres do filme são vistas, em algum momento, através dessa lente aracnídea. A cena de abertura, no clube de sexo secreto, mostra homens buscando prazer enquanto uma mulher esmaga uma tarântula com o salto. É a imagem da responsabilidade (a aranha) sendo destruída pelo desejo carnal, pela infidelidade. A aranha gigante que paira sobre a cidade é a figura onipresente e inescapável de sua mãe, uma força da qual ele não consegue fugir. E, claro, a cena final… ah, a cena final. Quando ele, após uma aparente reconciliação com a esposa, decide ceder à tentação mais uma vez e a encontra transformada em uma aranha gigante e assustada no quarto. Ali, ele percebe que o ciclo recomeçou. Ele não mudou. Ele continua sendo seu pior inimigo.

 

A Visão dos Criadores

 

O próprio diretor e o ator principal já deram pistas sobre essa interpretação. Suas palavras são tão reveladoras quanto o próprio filme.

O diretor Denis Villeneuve comentou sobre essa dualidade:

“E o filme foi pensado para ser sobre um homem ou duas pessoas. Para mim, a história é sobre dois homens, mas é um filme visto do ponto de vista subconsciente do personagem principal, ou seja, é sobre a história de uma pessoa, mas vista do subconsciente, ou seja, é na verdade a história de dois homens. É essa ideia, 1 + 1 = 1, que me causa uma espécie de vertigem que eu adoro. […] Nós interpretamos personagens de acordo com onde estamos na vida e para mim é sobre isso também – identidade… Quando a personagem de Helen encontra Adam pela primeira vez, para mim é um momento chave onde uma personagem testemunha a dualidade. Eu queria expressar como para ela é como se ela estivesse vendo um extraterrestre. […] ela vê o marido, mas não é a mesma alma. Ela sente que não é o mesmo homem. E ao mesmo tempo, o homem com quem ela está em contato é talvez o homem por quem ela estava apaixonada no começo.”

Jake Gyllenhaal também reforçou essa visão do conflito interno em uma entrevista ao The Hollywood Reporter:

“Enemy é sobre um homem casado, sua esposa está grávida e ele está tendo um caso. Ele precisa se descobrir antes de se comprometer com a vida adulta. […] Estranhamente, sinto que é um filme sobre uma pessoa e sua busca por si mesma, sabe, dentro das muitas pessoas que somos e que nos apresentamos como seres em nosso cotidiano. E eu adoro a ideia de alguém que está dividido, tão dividido que se tornou coisas diferentes para pessoas diferentes e teve que se reconciliar.”

Assistir a “O Homem Duplicado” é uma experiência que exige paciência, mas a recompensa é imensa. É um filme que não te dá respostas fáceis, mas te entrega perguntas que ecoam por muito tempo. É um filmaço que prova, mais uma vez, o talento de Villeneuve para criar tensão e nos fazer olhar para os nossos próprios abismos. Se você ainda não viu, ou se viu e não entendeu, dê uma nova chance. Garanto que a viagem vale a pena.

 

Referências:

  • Saramago, José. O Homem Duplicado. Companhia das Letras.
  • Dostoiévski, Fiódor. O Duplo. Editora 34.
  • The Hollywood Reporter. Entrevista com Jake Gyllenhaal.
  • Film Comment. Entrevista com Denis Villeneuve.
  • Prime Video. Conteúdo extra do filme “Enemy”.
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