O Rio de Janeiro que não está no Cartão-Postal: Uma Caminhada pela Nossa História Oculta

Deixe o cartão-postal de lado e descubra a alma da cidade.

Vista do sítio arqueológico do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, com as ruínas de pedra em primeiro plano e os prédios da Zona Portuária ao fundo.

O Cais do Valongo, Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, um testemunho a céu aberto da história do Brasil.

 

Eu sempre acreditei que conhecia o Rio de Janeiro. Não o Rio do turista, das praias e do Cristo Redentor, mas a cidade de verdade, suas veias abertas e suas esquinas cheias de vida. Ledo engano. Foi preciso uma caminhada despretensiosa pela Zona Portuária para que uma camada inteira da cidade, uma que sustenta todas as outras, se revelasse para mim de uma forma visceral e inesquecível.

Tudo começou com um nome: Cemitério dos Pretos Novos.

A história parece roteiro de filme. Em 1996, um casal, ao reformar a casa que havia acabado de comprar na Gamboa, se depara com milhares de fragmentos de ossos humanos sob o piso. Não era uma cova qualquer. Era o local de descarte dos corpos de africanos recém-chegados, que morriam antes mesmo de serem vendidos como escravos. Um cemitério que a história tentou apagar e que o acaso fez o favor de trazer de volta à luz.

Estar ali, hoje o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), é uma experiência que desafia qualquer descrição. Ver aqueles ossos à flor da terra, testemunhas silenciosas de uma brutalidade sem tamanho, me provocou um silêncio profundo. É como se o chão sob seus pés gritasse. Naquele momento, a história que a gente aprende nos livros, tão distante e asséptica, ganha corpo, cheiro e um peso esmagador. É como se o Superman, em toda sua força, fosse subitamente confrontado com um pedaço de Kryptonita; você se sente impotente, exposto à verdade nua e crua de nossas origens.

Mas o que mais me tocou é que essa história de dor indizível é apenas o ponto de partida para um roteiro ainda mais poderoso: um passeio pela Pequena África.

Saindo do IPN, a poucos passos, você pisa no Cais do Valongo. Reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, este não é apenas um sítio arqueológico. É o maior porto de desembarque de africanos escravizados do mundo. Feche os olhos por um segundo e tente imaginar. Você está pisando nas mesmas pedras que mais de meio milhão de seres humanos pisaram ao chegar a um novo mundo contra a própria vontade. É de arrepiar. É um lugar que deveria ser parada obrigatória para todo brasileiro.

Contudo, a Pequena África não é feita apenas de cicatrizes. Ela é, acima de tudo, um berço de resiliência. Andando mais um pouco, você chega à Pedra do Sal. Se o Valongo é o epicentro da dor, a Pedra do Sal é o quilombo cultural onde essa dor começou a ser transformada em algo novo. Foi ali, nos encontros de estivadores e ex-escravizados, que nasceu o samba carioca. É o lugar da festa, da reza, da resistência. É como se, das cinzas da opressão, Tia Ciata e tantos outros tivessem criado a trilha sonora oficial do Brasil.

Essa caminhada pela Zona Portuária mudou a minha relação com o Rio e, honestamente, com o Brasil. É um roteiro que não oferece paisagens paradisíacas, mas que entrega algo muito mais valioso: conexão. Conexão com quem veio antes, com as lutas que nos formaram e com a identidade que, tantas vezes, a gente esquece que tem.

Então, fica aqui o meu convite mais sincero. Da próxima vez que você estiver pelo Rio, fuja do óbvio. Troque uma tarde na praia por essa imersão. Vá conhecer o Cemitério dos Pretos Novos, caminhe pelo Cais do Valongo e sinta a energia da Pedra do Sal. Garanto que a cidade, e talvez um pouco de você, nunca mais serão os mesmos.

Referências

Imagem:

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