Confissões de um Antissocial: Quando me Assusto Comigo

Uma reflexão sobre grupos de WhatsApp, solidão e aceitação.

Clint Eastwood como o personagem 'Blondie' no cemitério do filme 'O Bom, o Mau e o Feio', representando um arquétipo de indivíduo solitário e seletivo.

Assim como certos heróis do cinema, a escolha pela seletividade social não é sobre ser bom ou mau, mas sobre sobreviver no seu próprio universo. | Créditos: Cena de "O Bom, o Mau e o Feio" (1966), uma co-produção liderada pela Produzioni Europee Associati (PEA).

Eu sou antissocial. E, quer saber? Estou em paz com isso. Na maior parte do tempo. Mas há dias, como hoje, em que acabo me assustando um pouco (ou muito pra falar a verdade) comigo mesmo.

A cena é clássica de qualquer manhã de trabalho em casa: tarefas finalizadas, um café ainda quente na caneca e aquela espiada descompromissada no celular. Foi aí que o abismo me encarou de volta, na forma de um grupo de WhatsApp com mais de 10.000 mensagens não lidas. Era a galera do colégio, a turma do “segundão”. Um verdadeiro sítio arqueológico digital da minha adolescência.

Por um masoquismo momentâneo, resolvi mergulhar naquilo. Foi como assistir a um filme em alta velocidade sobre vidas que tomaram rumos completamente diferentes do meu. Fulano casou com a irmã de ciclano. Beltrano virou padrinho do filho de não sei quem. Um ou outro foi desbravar o mundo e mora fora, alguns, infelizmente, já se foram. A grande maioria, no entanto, parecia orbitar o mesmo sistema solar de sempre, morando nas mesmas vizinhanças e, o mais impressionante, se encontrando. Ano após ano, lá estavam as fotos das festas, dos encontros da turma, das mesmas piadas requentadas.

Enquanto rolava o feed, uma única pergunta martelava na minha cabeça: “O que eu estou fazendo aqui?”. A verdade, nua e crua, é que eu não tenho a menor intimidade com essa gente para justificar essa avalanche de notificações. Aquele ecossistema de interações constantes, de laços que o tempo teimava em não dissolver, simplesmente não era para mim.

Foi um clique duplo: saí do grupo e a ficha caiu.

Olhei para os outros grupos silenciados: os das turmas dos quartéis que passei, o da faculdade, das pós-graduações, dos condomínios que morei, até o da família. Todos vibravam na mesma frequência, um microcosmo de comemorações, memes e cobranças sociais. E a minha reação a todos eles era a mesma: um grande e sonoro:

“tanto faz”

Foi aí que a primeira conclusão me atingiu como um soco no estômago: eu não sinto a menor falta desse tipo de proximidade. E isso me assustou. Nunca me vi como alguém “frio” ou “calculista”. Poxa, até o Tommy Shelby, com toda a sua ambição e frieza, tinha seu círculo íntimo, sua família, seus Peaky Blinders. Minha total indiferença parecia me colocar num patamar mais próximo do Anton Chigurh, o vilão de “Onde os Fracos Não Têm Vez”. A única vantagem é que meu cabelo, felizmente, não parece o do Beiçola de “A Grande Família”. 😉

Javier Bardem como o psicopata Anton Chigurh no filme 'Onde os Fracos Não Têm Vez', sorrindo de forma sinistra no deserto.
Apresento a vocês meu alter ego na maioria dos dias: Anton Chigurh. A única vantagem é que meu cabelo, felizmente, não parece o do Beiçola. 😉 | Créditos: Cena de “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007), Miramax Films / Paramount Vantage.

Mas então, em meio a essa constatação sociopata, veio a segunda conclusão, uma espécie de epifania. Eu percebi que, mesmo sem querer, faço parte de dezenas de comunidades. E isso me fez pensar na galera que constantemente lamenta a solidão nas redes sociais e entra em quadros de isolamento e depressão. Fico com a impressão de que muitos estão tão imersos em suas próprias brumas que não conseguem ver o óbvio: nossa sociedade é feita de tribos, de grupos. E, gostando ou não, todos nós pertencemos a vários deles.

A prova disso é a facilidade com que as pessoas trocam de “pele social”. Alguém comete uma gafe, um erro grave no seu círculo, e o que acontece? Simplesmente deleta aquele grupo, muda de cidade, de emprego, e começa do zero em outra comunidade, sem grandes traumas.

-Lembra daquela menina mal falada do seu bairro que some e descobrimos que mudou de vizinhança sem deixar endereço nem contato?

Talvez a solidão que tanto assombra as pessoas não seja a ausência de grupos, mas a incapacidade de se conectar com eles. Ou, quem sabe, a frustração de esperar que a turma do colégio ainda faça sentido vinte anos depois.

No fim das contas, aceitar meu lado “antissocial” é apenas reconhecer que minhas conexões são diferentes. São menos numerosas, talvez, mas muito mais intencionais. Não é sobre ser frio, é sobre ser seletivo. E, quer saber? Acho que o Tommy Shelby aprovaria essa estratégia.

Referências:

Imagem:

  • Cena de “O Bom, o Mau e o Feio” (1966), uma co-produção liderada pela Produzioni Europee Associati (PEA).
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