Sabe quando a vida parece um roteiro que a gente só segue no automático? Na busca por um sentido maior, muitos de nós acabamos entrando em caminhos que prometem respostas. Eu mesmo, por um bom tempo, fiz parte de uma religião. Não vou citar nomes, por respeito a quem caminhou ao meu lado naquela época. Foi uma fase importante, um ciclo necessário. Mas, como em toda boa história, chegou um momento em que o personagem principal precisa de um novo roteiro.
Senti nos ossos que era hora de partir. Troquei as verdades que me eram dadas por uma busca pessoal, um caminho pavimentado pela filosofia — pelo estoicismo, pela praticidade do utilitarismo. Chega uma hora que você cansa de dogmas e só quer o que funciona, o que te mantém de pé no meio da tempestade.
A mudança precisava ser feita às claras. Fazer as coisas na sombra nunca foi meu estilo. Fui comunicar minha saída ao líder daquele lugar. Ele me olhou, como se já soubesse, e disse com uma calma cortante:
“Sei o que vem me dizer, mas saiba: sua alma já não cabe mais aqui. Ela anseia por outras guerras.”
E então, ele cravou a frase que se tornou meu norte:
“Alguns homens foram feitos para o templo. Você foi feito para a tempestade.”
Eu não sabia, mas meu “mundo”, minha “tempestade”, estava prestes a se materializar da forma mais intensa possível: entrei para as Forças Armadas. Ali, eu entendi o que era uma religião diferente. Uma na qual você não apenas acredita, você a veste. A farda se torna sua segunda pele, um compromisso visível que te acompanha 24 horas por dia.
Você vive para ela, respira o verde. Os companheiros de tropa são a sua família, quem vai estar ao seu lado nos piores momentos e se você sucumbir em combate, serão eles quem te darão a extrema-unção.
Olê mulher rendeira
Olê mulhe renda
O tu me ensinas a fazer renda
Que eu te ensino a patrulharA noite é minha amiga
A chuva minha companheira
Pois nesse solo em que tu pisas
Eu patrulhei a noite inteiraAtravessei o rio à nado
Na ponta de uma agulha
Eu arrisquei a minha vida
Mas salvei minha patrulha
E a minha jornada do herói, o “bom combate”, foi travado no chão deste Brasil. Do frio cortante do Sul ao calor escaldante e úmido da Amazônia.
Por terra, pelo ar, pelo mar…
Fui empurrado para cursos obscuros, daqueles que não estão na grade curricular de nenhuma faculdade e que te ensinam a essência do ser humano na marra. Aprendi a ler pessoas, a identificar uma mentira nos olhos ou a corroborar uma verdade pesada, daquelas que mudam tudo.
Eles me entregaram as chaves de um reino invisível. Pilotei veículos que não apenas atravessavam o terreno, mas o dominavam, transformando-se em extensões do meu próprio corpo, máquinas de milhares de dólares que se moviam como espectros sob meu comando. Empunhei armas que pareciam forjadas em um lugar onde a física e a feitiçaria se encontram, capazes de sussurrar a morte a quilômetros, e que me permitiam ser o juiz silencioso a uma distância que desafiava os deuses. Com equipamentos que transformavam a noite em um dia fantasmagórico e o silêncio em um mapa de vibrações, eu não era mais um homem. Eu era um oráculo da guerra, vendo o que não podia ser visto, tocando o que não podia ser tocado. Era um poder absoluto e solitário, que me elevou a um estado onde a linha entre homem e demônio se torna perigosamente tênue.
Arrisquei minha vida em vários locais. Entrei em lugares que cheiravam a morte, onde o perigo era palpável no ar. Em um dia, eu liderava; no outro, era liderado. Aprendi que a hierarquia não é só sobre poder, mas sobre responsabilidade e confiança. Vi o melhor e o pior das pessoas sob pressão.
Esse foi o meu “mundo”. Foi lá que a filosofia deixou de ser um conceito e virou um kit de sobrevivência. Foi a prática, e não a teoria, que me ensinou sobre coragem, resiliência e, acima de tudo, sobre o meu próprio caminho. Aquele líder estava certo.
Eu fui feito para a tempestade.
Referências:
- Baseado nas anotações e experiências pessoais do autor do blog.
- Canto de Patrulha do Exército Brasileiro.