Eu devo ter uns seis ou sete anos na lembrança que me veio à cabeça hoje. Naquela época, meu repertório sobre aviões se resumia às máquinas modernas que eu via nos filmes e na TV. Pra mim, a lógica era clara: o piloto ia na frente, com o “nariz” do avião rasgando os céus. Por isso, quando vi pela primeira vez uma imagem do 14-Bis, a genial criação de Santos Dumont, minha cabeça só imaginava que o avião estava ao contrário. Lembro de ver uma filmagem antiga e achar de que o filme estava passando ao contrário.
É curioso como a falta de repertório nos leva a conclusões completamente equivocadas. E a Inteligência Artificial cometeu o mesmo erro, parecido com o da minha mente infantil. E o pior: com o selo oficial da Agência Espacial Brasileira (AEB).
Pois é. No último dia 20 de julho, em uma postagem para celebrar os 152 anos do nascimento de Santos Dumont, a AEB publicou uma “arte” que parecia ter saído diretamente da minha confusão de infância. A imagem, gerada por IA, mostrava o Pai da Aviação pilotando o 14-Bis… pela frente. Como se a aeronave, um ícone da nossa história, estivesse voando ao contrário.
A gafe, por si só, já seria cômica se não fosse trágica. Mas ela não parou por aí. Os erros na ilustração se acumulavam como uma cascata de descaso: os trens de pouso estavam no lugar errado, as hélices foram transformadas em tratores e uma das asas parecia ter sido simplesmente esquecida pela metade. O texto que acompanhava a imagem também não ajudava, com uma linguagem repetitiva e cheia de emojis que mais parecia um daqueles spams de “bom dia” do que uma homenagem oficial de um órgão de ciência e tecnologia.
O que mais me intriga nessa história toda não é nem a falha da IA. Ferramentas são ferramentas. Uma IA generativa não “sabe” o que é o 14-Bis; ela apenas processa um oceano de dados e monta um quebra-cabeça visual com base no que foi solicitado. O problema, e aqui mora minha reflexão, é a falha humana que permitiu que isso acontecesse.
É quase como dar um uniforme de Stormtrooper para um robô. Ele pode até se parecer com um soldado do Império, mas sem a direção correta, vai atirar para todos os lados, menos no alvo. A IA foi a arma, mas quem apertou o gatilho sem mirar foi um humano.
Fico aqui pensando: como é que uma agência tão importante, que deveria zelar pelo futuro e pela história da exploração dos céus do nosso país, aprova uma publicação dessas? Isso escancara uma realidade preocupante do nosso tempo: a produção de conteúdo se tornou uma esteira de “jobs” a serem entregues o mais rápido possível, sem o mínimo de revisão, curadoria ou, francamente, conhecimento sobre o que se está falando.
Lembro de uma época, não tão distante, em que as coisas precisavam ser revisadas. Um texto passava por um editor, uma imagem por um diretor de arte. Havia um zelo, um respeito pelo que estava sendo comunicado. Hoje, na ânsia pela agilidade e pelo “engajamento”, parece que a validação virou um luxo. Confia-se cegamente na máquina, esquecendo que ela não tem discernimento, não tem contexto histórico e, muito menos, o respeito que a memória de Santos Dumont merece.
A gafe da AEB é um sintoma. Um lembrete de que, por mais avançada que seja a tecnologia, ela não substitui o conhecimento, a atenção e o cuidado humano. No fim das contas, a Inteligência Artificial apenas refletiu a nossa própria falha. E, por um breve momento, ela viu o 14-Bis exatamente como eu via quando era criança: de um jeito completamente errado. A diferença é que eu aprendi. Resta saber se nós, como sociedade, também aprenderemos.
Há, sim, e parar de usar as agências públicas como cabides de emprego.
Referências:
- Portal 14B: Agência Espacial Brasileira comete gafe ao usar IA para homenagear Alberto Santos Dumont
- CBN Curitiba: Polêmica sobre imagem do avião 14 Bis repercute nas redes sociais; Bia Kunze comenta
- AeroJota: Erro da Agência Espacial Brasileira ao retratar o 14 Bis gera indignação
- O Antagonista (Crusoé): Erro do governo Lula em imagem de Santos Dumont rende críticas e “errata”